Prevenir a pandemia Um negócio de milhões
A ameaça estendeu-se ao homem e fez do medicamento para a gripeTamiflu uma mina de ouro para o gigante farmacêutico Roche
HÁ dias estive em Washington e
mentar da NATO sobre a preparaçãoda segurança civil em caso de ata-
as pessoas queiram comprar os nossos produtos e o mes- mo se aplica ao Tamiflu.» «Claro. Por isso, a Roche já ofereceu à Organização ANA GOMES CONVERSAnumaqual-
quer localidade suíça, nu-ma festa, por volta da
Mundial de Saúde (OMS) 30 milhões de cápsulas, para que
«A gripe das aves já avan- tenha à sua disposição Tami- çou até aos Urais. É só uma flu suficiente para poder rea-
pior em caso de traiçoeiro ataque terrorista. questão de tempo até chegar gir a uma pandemia assim
As ameaças que os peritos americanos consideram mais
a nós, sofrer uma qualquer que ela se manifeste. Espe-
prováveis podem provir de ataque bioterrorista ou de uma
mutação e passar para o ho- ra-se que a administração
«dirty bomb» (explosivos ordinários contendo material radioacti-
imediata de Tamiflu no local
vo) feita entrar por contentor marítimo. O potencial devastador
«A mim não me faz dife- do surto possa conter a pan-
atingiria redes logísticas de transporte e energia, alimentares,
rença. Sinto-me segura.» demia. Além disso, fizemos
financeiras, informativas, etc., que suportam o poderio e o «way
«Segura? Como assim?» descontos substan-
of life» americano. O elenco de potenciais alvos é inesgotável e
«Comprei dez embalagens ciais no fornecimento do me-
irresistível para a lógica terrorista. E o terrorismo, como subli-
de Tamiflu. A mim já não me dicamento a cada um dos paí-
nhou o académico do Council on Foreign Relations, Steven
acontece nada.» ses que o encomendou.»
Flynn, veio para ficar e ataca em todo o lado, o que contraria a
«E como chegaste a essa «Segundo as nossas esti-
versão errónea e simplista de Bush e Cheney de que é preciso
conclusão?» mativas, vendemos a cerca de «levar o combate ao inimigo (Iraque e Afeganistão) para «Sou médica e trabalho na 35 francos por embalagem, o não termos que o defrontar aqui em casa». Roche. Estou muito perto da que corresponde a um des-
Logo após o 11 de Setembro, a crise do «antrax», de origem
fonte.» conto de 50 francos face ao
nunca clarificada, fez criar mecanismos de vigilância, controlo
preço praticado pelas farmá-
estatístico e detecção que envolvem redes hospitalares e profis-
cias. Mas não posso confir-
sionais de saúde treinados e interligados. Mas, hoje, os espe-
mar essa informação, porque
cialistas temem, sobretudo, uma pandemia de gripe aviária. Co-
acordámos com os nossos
mo vem alertando a OMS, basta que o vírus adquira capacida-
clientes, os países, em que
de de transmissão entre seres humanos e enfrentaremos a pan-
não divulgaríamos os descon-
demia mais desvastadora de sempre. Só os EUA podem vir a
tos praticados. São substan-
ter entre 200 mil a 16 milhões de mortos neste «worst case
pois «talvez venha a haver falta ciais e iguais para todos os
scenario», se falhar a produção a tempo de uma vacina eficaz. do medicamento por causa da países industrializados, sen-
Esse falhanço não é hipótese académica. Porque nem a
grande procura». Cristoph Mo- do ainda mais significativos
Administração Bush, nem os outros governos disponibilizam
para os países em vias de de-
recursos financeiros suficientes para produzir vacinas e apetre-
senvolvimento.»
char as infra-estruturas de saúde para uma pandemia. Produzir
corroborou que talvez «faça sen-
uma vacina é díficil, caro e leva tempo — pelo menos seis me-
tido» ter o medicamento em ca-
ses. E mesmo que se produzissem vacinas a tempo para a
sa. Nos EUA, já se fala de «com- «Ninguém quis saber de
Europa, a América do Norte e o Japão, milhões de pessoas em
pras motivadas pelo pânico» e nós quando o Tamiflu pratica-
países em desenvolvimento ficariam por vacinar. Uma corrida a
mente não se vendeu durante
vacinas implicaria uma terrível triagem: que critérios determina-
anos a fio, pois, após a sua in-
soas que «resistam à tentação trodução no mercado, verifi-
A vulnerabilidade dos EUA (e geral) contra o bioterrorismo
de se abastecerem para já com cou-se um período de dois
está ilustrada num caso relatado em «The next Pandemic?», de
Tamiflu». Entretanto, governos anos só com gripes sem gravi-
Laurie Garrett (revista «Foreign Affairs», Julho/Agosto 2005):
dade. Vimo-nos obrigados a
uma amostra de micróbios preparada por um laboratório priva-
destruir toneladas de embala-
do foi enviada por correio pelo Colégio Americano de Patologis-
gens, porque este produto
tas a cerca de cinco mil laboratórios em 18 países para recertifi-
tem uma validade reduzida.
cação. Incluía o vírus de uma gripe que matou milhões de pes-
São circunstâncias particular-
soas em 1957 e para o qual não há imunização geral. Só seis
mente difíceis, se forem tidos
meses depois foi dado o alerta e ninguém sabe ainda porque
em consideração os custos de
não foram tidos os cuidados de processamento prescritos para
desenvolvimento de um medi-
um vírus tão letal, porque estava ele na posse de um laborató-
camento deste tipo.»
rio privado e porque tudo só foi detectado seis meses depois.
Cada governo bem pode planear para os piores cenários.
Mas uma pandemia só se combate eficazmente através de me-
canismos globais e multilaterais como a Organização Mundial
da Saúde (agência da ONU). E a Administração Bush tem sido
virulenta contra o multilateralismo e a ONU.
Um especialista em saúde pública americano considerava,
«isso é uma tarefa da OMS e
em 1971, que «tal como os furacões, as pandemias podem das autoridades sanitárias. A ser identificadas e o seu curso provável projectado, para
ce nada agastado. «O facto de Infection Society, nos EUA, que os alertas possam ser emitidos». O problema não está termos lucros com a venda do por exemplo, recomenda que
na previsão, como o Katrina, o Rita e a OMS demonstram. Está
Tamiflu», afirma Reddy, «é po- se deve distribuir um medica-
na capacidade dos responsáveis políticos de não traírem a con-
sitivo. Assim, podemos inves- mento contra a gripe a metade
fiança dos seus concidadãos, ignorando os alertas e desvian-
tigar novas substâncias. O Ta- da população. Mas não preten- miflu demonstra que estamos do comentar estes números». no caminho certo. É bom que Christoph Keller
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